Imagina SP: Complexo de imigrante, e O Brasil é preto ou branco?

LIP
5 min readDec 13, 2022

--

São Paulo é única em muitos aspectos. Um dos que mais me impressiona, encontrei na introdução escrita por Edward Glaeser no livro São Paulo uma biografia gráfica do arquiteto e urbanista Felipe Correa: Desde 1920, a população de Londres aumentou apenas 17%, a de Nova York, apenas 45% e o centro de Paris encolheu. A população de São Paulo se multiplicou 19 vezes desde aquele ano.

Hoje, São Paulo é uma cidade de mais de 12 milhões de habitantes. Você nasceu em São Paulo? Seus pais? Os 4 avós? Os 8 bisavós? Provavelmente não. É difícil que você conheça alguém cujos 4 avós nasceram em São Paulo. 8 bisavós paulistas? Mais fácil encontrar uma mala de dinheiro na rua.

Importante ressaltar que antes dos imigrantes, sejam aqueles que vieram para fugir de dores, fome e guerras de seu sítio de origem ou aqueles que vieram buscar algo aqui: fortuna, paz ou um quinhão de terra, houve um grande contingente populacional que foi trazido para cá por nenhum desses motivos, mas de modo brutal, como escravos, à sua revelia.

O que isso implica? Não só no fato de sermos majoritariamente desterrados ou filhos e netos deles, mas o que isso implica na nossa forma de ver e imaginar a cidade? Se eu estivesse há 4 gerações morando no mesmo bairro, seguramente, teria outra relação com ele.

Quando uma casa é alugada, se diz que cuida-se pior dela do que se ela fosse própria. Por mais que isso possa fazer sentido numa lógica financista (supostamente, o locador tem interesse que seu imóvel valha mais e o locatário quer evitar gasto em algo que não é dele), não faz sentido algum pela perspectiva do uso: seja alugada ou própria, é o lugar onde você vive.

Tomando essa lógica emprestada: e a cidade, é nossa ou alugada? Quando me deparo com a rua, entendo-a como um espaço que é de todos ou um espaço que não é de ninguém? Sobretudo aqueles que são os donos da terra — o quão forte é o senso de pertencimento e responsabilidade em relação ao espaço público da nossa cidade?

Numa passagem de “Cem anos de solidão” de García Márquez, o coronel Aureliano Buendía explica que poderiam mudar o povoado de Macondo de lugar, pois ainda não temos um morto. E a gente não é de lugar nenhum enquanto não tem um morto embaixo da terra. Quantos dos nossos têm que estar sob a terra para nos sentirmos verdadeiramente ligados a ela? O que cria esse vínculo?

Não só enterrados no sentido literal, mas sobretudo simbólico: o que preciso para me sentir parte? A prosperidade que São Paulo proporcionou a muitos é suficiente para nos ligarmos à terra?

Há um elemento comum de tal “complexo de imigrante”: o sangue ainda não se misturou ao solo, mas tampouco é o mesmo que já foi um dia no porto de origem, instaurando um estado transitório cinzento: uma larga fronteira onde não sou nem estrangeiro, tampouco autóctone.

A gigantesca maioria veio sem nada e teve que se reinventar, criando uma população supostamente mais “empreendedora” e mais aberta. Por outro lado, o desenraizamento que nos traz agilidade e um apetite pela mudança também nutre uma cultura curto-prazista, predatória e individualista.

Pessoalmente, me interesso menos pelo aspecto sociológico, histórico ou econômico da cidade e mais pela questão poética e estética: que tipos de imagens, narrativas e símbolos estamos criando que fortalecem uma construção em longo prazo? Conseguimos estabelecer uma relação poética com a cidade?

-

Sendo mais concreto:

Até que ponto nosso olhar — embebido da nossa origem imigrante — não oblitera a visão do todo, de nos perceber como pertencentes a um todo coletivo? Você tem a percepção que vive na cidade com mais japoneses, libaneses e italianos do mundo fora dos seus países de origem? E que isso nos influencia, mesmo que não saibamos?

Essa visão turva fica grave quando se torna ferramenta de construção de desigualdades, preconceitos e opressões: não só deixamos de construir, ao reforçar e aceitar esse cenário turvo, como colaboramos com nosso imaginário e narrativas que saem da nossa boca para perpetuar anacronismos e absurdos, que acredito que a gigantesca maioria (acredito) gostaria de evitar, quando postos sobre a clareza do sol.

Claro que o principal responsável por essas narrativas, imagens e percepções é a própria realidade, mas seria muito pobre não reconhecer o caminho inverso: a capacidade de criar novas percepções, narrativas, imagens e símbolos colabora para a transformação da realidade.

-

Imagine a população dos Estados Unidos e a brasileira. Nessa imagem abstrata que você criou, em qual delas há mais negros?

O Brasil é o país com o maior número de negros no mundo fora da África, e o segundo maior incluindo a África, ficando apenas atrás da Nigéria.

Quando descobri isso, me espantei por não ser essa a imagem que eu formava quando pensava na população brasileira. Quando pensava no Brasil e não visualizava a imagem de uma população predominantemente negra, o que isso diz sobre mim? Preconceito? Racismo Estrutural? Alienação? Falta de educação? Provavelmente um pouco de tudo isso e mais: também diz sobre o tipo de imagem e informação de que me alimento para criar essa imagem abstrata da “população do Brasil”.

Divido 4 fotos:

Presidente e ministros do país com maior população negra do mundo, a Nigéria
Presidente e ministros do país com a segunda maior população negra do mundo, o Brasil

Impossível não olhar essa foto, consciente que 54% da população se define como negra ou parda no brasil (segundo o IBGE) e não ver que há um problema grave.

Não ter construído para si a imagem de que o Brasil é um país negro faz com que essa imagem não pareça tão revoltante e absurda. Mas ela é.

Gabinete do presidente da Etiópia, terceiro país com maior população negra do mundo.
Presidente americano e seus ministros. Segundo país com maior população negra fora da África e o 7º ou 8º país com maior população negra do mundo.

Os negros representam de 14% do total da população americana. Muito menos do que no Brasil, tanto em termos absolutos quanto relativos.

-

O Imaginário — as imagens e narrativas que formamos na nossa cabeça são um poderosíssimo instrumento de construção e sustentação da realidade.

O que faz com que imaginemos “A” e não “B” ou “Z”?

Esse texto é parte e tributário da pesquisa desenvolvida no Méthodo (MTH) empreendida por RES e todos no CAC, a quem sou muito grato. Agradeço a todos que trouxeram inputs para o projeto, particularmente a Camila Padilha.

Luca Parise é artista e pesquisador no Conglomerado Atelier do Centro (CAC), onde é orientado pelo artista, pensador e pedagogo, Rubens Espírito Santo. Baseado em São Paulo, Brasil

--

--