Objetos, Baudrillard, Pareidolia e Escalas

LIP
7 min readJan 7, 2022

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Caros amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos:

Em primeiro lugar, desculpe pelo atraso: essa última semana foi o lançamento do projeto Expedição São Paulo Belém (que comento mais abaixo) e acabou tomando mais tempo que o esperado, atrasando o texto.

1.

No texto de hoje vou expor uma percepção a partir de um trabalho recente (as esculturas-maquete), que acredito ser uma forma muito interessante de como percebemos os “objetos”. Começo transcrevendo um trecho de “o sistema dos objetos” do Jean Baudrillard:

Se utilizo refrigerador com o fim de refrigeração, trata-se de uma mediação prática: não se trata de um objeto, mas de um refrigerador. Nesta medida, não o possuo. […] Todo o objeto tem desta forma duas funções: uma que é a de ser utilizado, e a outra a de ser possuído. […] Estas duas funções acham-se na razão inversa uma da outra. Em última instância, o objeto estritamente prático toma um estatuto social: é a máquina. Ao contrário, o objeto puro, privado de função ou abstraído de seu uso, toma um estatuto estritamente subjetivo: torna-se objeto de coleção. Cessa de ser tapete, mesa, bússola ou bibelô para se tornar “objeto”.

Jean Baudrillard

Gostaria de analisar um único aspecto da transcrição, que é o que mais me interessa: Baudrillard nos apresenta que há uma relação de “razão inversa” entre usar e possuir um objeto, que me parece bastante interessante, ou seja, quanto mais nos relacionamos com o seu uso, menos o possuímos como objeto, e por consequência, para ele ser “objeto” deveria estar destituído de uso (como “objeto de coleção”). O que parece fazer bastante sentido.

A partir dessa definição de Baudrillard, me pergunto até que ponto a “função de uso” do objeto não é algo que me eclipsa de ver o objeto como objeto, ou seja, hoje em dia, conseguimos ver algo para além dessa função de uso?

Por exemplo, um travesseiro, que provavelmente a maioria de nós usa toda a noite: minha relação com o travesseiro é a de tê-lo como um apoio para minha cabeça. Mas eu já o olhei despido deste uso? Eu já me relacionei com um travesseiro como se fosse apenas um retângulo, um volume, um saco com penas? Ou apenas o contemplei como objeto? Conseguimos fazer isso?

Além disso, está pressuposto que eu sei qual é o uso do objeto, mas quem disse que o travesseiro não pode ter um uso excepcional para outra coisa que não consigo enxergar? Me pergunto se o que vejo já não está tão comprometido com o que eu penso que é o uso de um objeto ao ponto de me impedir de vê-lo para além do que eu penso que ele é.

Isso pode parecer algo bobo, mas não é, pois demonstra uma incapacidade de vermos uma coisa para além do que esperamos que ela funcione, ou seja, um pré-conceito que temos das coisas.

Cito um exemplo pessoal e prático, para tentar aterrissar o que quero investigar: esta semana saí de casa decidido a comprar um “puxador de gaveta” e foi muito difícil encontrar. De repente, depois de rodar por alguns lugares, me dei conta de que o que eu estava buscando era uma esfera com um parafuso: duas coisas muito mais simples de encontrar. Rapidamente resolvi com uma bolinha pula-pula encontrada em uma papelaria e um parafuso que eu tinha em casa. Apesar de ser um exemplo caricato, ele é bastante ilustrativo.

Puxador feito por mim e puxador comprado

O que me pareceu extraordinário foi perceber que há uma dominância em vermos o uso em detrimento do objeto

Uma pausa: Ao pegar uma faca você se pergunta se seria um bom instrumento para prender o cabelo ou um bom acessório para ser levado no bolso de um terno OU automaticamente você assume a faca como objeto de corte? Faça um teste: escolha um objeto e tente olhá-lo sem ser dominado pelo uso que você confere a ele comumente.

…e isso nos impede de nos relacionar com o objeto. Voltando ao exemplo do puxador, percebo que isso tem consequências práticas: eu demorei muito tempo para perceber que um puxador não precisava ser o que eu entendia que era um puxador. Ao entender isso, foi muito mais fácil achar uma solução. E quando isso não deve acontecer com problemas que temos em relacionamentos? trabalhos? dia a dia?

Rochedos em L’Estaque, Pintura de Cézzane que está no MASP; Trecho d’A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade e Escultura e escultura “Echo” de Richard Serra no IMS Av. Paulista.

Acredito que essa função dual de mediação do objeto apresentada pelo Baudrillard (de uso e posse) está fortemente enraizada em nós, mas não parece ser algo fundante no ser humano, é uma construção cultural (e semiótica?). Inclusive entendo que a arte é um lugar que luta ativamente contra a redução do objeto a sua “função de uso” — qual o uso de uma tela do Cézanne, de uma escultura do Richard Serra ou de um poema do Drummond?

2.

Existe um fenômeno muito simpático, que todos já devem ter experimentado que se chama Pareidolia:

Wladimir bulgar/science photo library/ Getty images

A Pareidolia (que já foi descrita como indício de psicose) consiste na nossa tendência em ver rostos em qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo.

Michelle R. Guilmet-Buck/ Getty Images

Claro que sabemos que é um microscópio e uma árvore, mas é impossível também não ver um rosto.

3.

Escala 1:50, ou seja, é 50 vezes menos que uma pessoa de 1,70 mUma escala é uma miniatura de ser humano, um bonequinho que é usado comumente em desenhos e maquetes de arquitetura para facilitar a interpretação e visualização do tamanho do que está sendo desenhado ou da construção na maquete.

As escalas não são um rosto e nem se parecem um, mas, de maneira totalmente empírica, acredito que nosso cérebro tem uma espécie de “atração” pela figura humanóide — talvez algo de natureza parecida com o fenômeno da pareidolia: ao justapor uma escala a qualquer objeto, se torna muito mais fácil destituir o objeto da sua função de uso e dar a ele um novo uso (mesmo sabendo que não é “de verdade”), que é gerado em relação à escala. Da mesma forma que acontece na pareidolia, não deixamos de achar que uma árvore é uma árvore, mas vemos outra coisa também.

Isso é fascinante!!! Através de um pequeno truque, uma escala, conseguimos nos “enganar” e ver algo além da sua função de uso que lhe conferimos ordinariamente.

Escalas de diferentes tamanhos ao lado de borracha.Olhando as imagens abaixo, você sabe que é uma borracha, mas é impossível não a ver também como um edifício, ou o que você quiser — ou seja, foi criada uma nova coisa, há uma expansão na percepção — você vê na borracha coisas que não veria se não houvesse outro objeto lá.

Mais do que nunca, essa forma de se relacionar com os objetos através da função de uso me parece uma questão fundamental, pois estamos nos inserindo cada vez mais em uma esfera virtual (ou seja, não-real) onde nossa relação com o mundo é mediada pelo uso que achamos que as coisas tem: um mundo utilitário que lentamente tolhe nossa capacidade de olhar e pensar diferente do que está sendo programado.

Até que ponto conseguimos fazer resistência a isso, agir de modo diferente nos pequenos gestos diários? Ao cozinhar, você já usou o macarrão de outra forma além de fervê-lo? Já parou e tentou olhar, por 2 minutos, um tênis? ou tentou agir diferente de como você age normalmente? por mais caricato que possa parecer, creio que estes pequenos gestos estão relacionados à arte.

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No próximo texto pretendo contar um pouco mais sobre o que tenho refletido a respeito do Brasil, particularmente, através da leitura Gerardo de Mello Mourão, que tem sido muito rica para investigar o projeto da expedição São Paulo Belém Enquanto isso, deixo o link para a página do projeto para quem se interessar em saber mais:

Expedição São Paulo Belém

Boas festas a todos!
Próximo texto, 12 janeiro

PS: Todos os textos, já revisados (obrigado CCS!) estão sendo salvos nesta página do página do Medium aqui.

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