Barbie, Star Wars e a Ficção

LIP
4 min readAug 16, 2023

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Margot Robbie em Barbie, 2023

Me lembro quando assisti o Star Wars 1 — a ameaça Fantasma no cinema. Tinha 9 anos e os ponteiros não tinham ainda dobrado pra o ano 2000. Lembro pouca coisa do filme, mas lembro de sair do cinema (talvez tenha sido minha primeira vez) com uma sensação mágica. Lembro como se fosse ontem, andando pela labiríntica saída do cinema do shopping jardim sul, que era por uma espécie de área de serviço — um não lugar — me perguntando, ou melhor, vivendo a possibilidade de também ser um Jedi.

Por um curto período, como no estado entre o sono e a vigília, os universos se misturavam: de algum modo sabia que Star Wars era de “mentira” e a escola, natação, são paulo, meus pais e irmão eram de verdade — mas por um breve momento, reforçado pelo não lugar que eu estava, experimentei a ficção vazar na realidade de maneira “consciente”(?), que não estava sendo “enganado” pelo papai noel ou algo que o valha. Lembro de ter me perguntado seriamente por que não usávamos capas normalmente ou o que eu precisaria para ter um sabre de luz.

Julho de 2023, saio da sala de cinema de Barbie e vejo aquele onda de pessoas de rosa (a maioria mulheres) saindo pelo corredor ofuscando meus olhos depois das 2h na sala escura. Por um momento muito breve, também senti a ficção vazar para a realidade. Sem dúvida estava em São Paulo, na saída do cinema, indo para a rua, mas simplesmente era como se fosse uma outra realidade, reforçado por aquele mar de mulheres rosas alegres falando alto.

Nesse breve momento, senti que o mundo não era uma estrutura machista patriarcal, senti que as mulheres tinham mais (muito mais) poder que os homens, que o mundo era feminino. E isso me trouxe a mesma sensação de mágica, de estar num lugar que não existe que senti com Star Wars.

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Acredito que estou minimamente por dentro das conversas sobre equidade e feminismo, mas é muito diferente ter uma compreensão intelectual de algo e ter uma experiência corpórea. Entender algo intelectualmente é muito diferente de experienciar algo. Conjurar experiências que “não existem” no plano do real — fazer esses artífices — para que vivamos algo que não podemos viver é um dos lugares mais poderosos de uma tradição artística. Por que não poderia dizer que há um fio que transpassa Sófocles, Esquilo e Eurípides que também toca em George Lucas e Greta Gerwing?

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O que é esse fenômeno? Reino da nossa realidade e o Reino da ficção (mágico) são cindidos e talvez seja fundamental que assim o sejam, mas existe uma fronteira, eles se tocam e há uma guerra violenta entre eles, ora o primeiro ganha território sobre o segundo, ora o segundo avança no campo oposto e assim eles correm através do tempo: sociedades como um funcionamento radicalmente diferente da nossa (que tem — ou supostamente — a democracia como princípio), como um dia foram a dos piratas de Madagascar, os índios Guakys ou os Bosquímanos, são ficções hoje em dia.

O filme de Greta Gerwing tem um grande mérito que é fazer um pequeno furo e mostrar algo — permite que algo que hoje é uma total ficção (um mundo feminino) se materialize. e Isso não é uma manobra intelectual, o conteúdo que ela fala está ai há muito tempo, é uma manobra plástica: o filme, os objetos, o roteiro, os cenários (!) — o filme como um todo, consegue ludibriar a linha inimiga do real e invadir ela durante a noite, mesmo que seja para quando acender a luz, ela ser dizimada pela realidade machista. Essa manobra plástica, formal, por onde Greta Gerwing consegue surrupiar sua mensagem para além do mundo mágico, e fazê-la ser no mundo real, mesmo que brevemente, é estonteante.

Não só por ampliar as possibilidades do real, mas por mostrar de maneira incontornável, que por mais alguns (?) queiram dizer a “realidade é equânime” (SIC), ou que “as mulheres têm tanto poder como os homens” (SIC), não é essa a realidade. Ao se acender a luz e se perceber que aqui é a realidade — sim, a ficção é dizimada quase que instantaneamente pela força da realidade (não consegue nem chegar na rua, que aquela sensação do corredor do cinema, já virou uma fantasia distante), mas nesse breve lapso que ambas coexistem é gerado um constrangimento ao evidenciar, que a realidade não uma soberana absoluta: a ficção está sempre invadindo o seu reino e mesmo que lentamente, moldando ele.

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