Um depoimento feliz

LIP
2 min readApr 25, 2023

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Senhoras e senhores,

Câncer, o caranguejo que ousou sonhar ser um Rodin, jaz sobre o tampo de minha escrivaninha. Claro que não ele inteiro. Tampouco mergulhado numa garrafa qualquer de cachaça barata. Sua imponente pinça faz um suave movimento que detém a beleza de uma curva sem abdicar da força do ângulo reto. Sim, senhoras e senhores, bem na minha frente. O porquê ou como ou quando ou qualquer outros pronomes dessa classe, burocracias e documentos acerca dos eventos que culminam neste instante não importam, nem a mim, nem a Câncer. O que importa, então, vocês podem estar se perguntando? Muitas coisas. A pinça nunca teve de parar de pé. Uma ressalva: não cabe a nós elucubrarmos se ela foi feliz ou triste, sabe-se que foi pinça, e pinça é pinça, pegada ao tronco do crustáceo que a carrega pelos mares, mangues e praias por dias e noites antes de vir parar aqui. Todavia, a partir de agora, ela tem que parar em pé e sem a ajuda do corpo que um dia lhe foi útil, e para. Diante dos meus olhos, sob a superfície de madeira, está na posição perfeita, engastada entre a barriga de um dois e a curva de um três, velas do meu aniversário de 32 anos, que foram carinhosamente compradas pela minha mãe, mesmo sem saber nada a respeito de Câncer, seus sonhos e beleza. Velas bonitas, de um azul brilhante glitteroso, levemente fosqueadas pela cera que foi ao fogo e depois esfriou. Não contente, Câncer foi munido com panos e ouro: todos os louros aos vencedores. Nunca aceitou apenas ser o que era, almejou, se não os céus, a maior riqueza dos homens. Quis ser o braço de Davi que lançou a pedra fatal. Totalmente perturbado por seu delírio, louco, preso em sua própria torre, falando sua própria língua, foi. Senhoras e senhores, vocês acreditam que algo que não é, pode vir a ser? Não estou lhes pedindo fé, lhes peço que desarmem o coração — desarmem todos os alarmes da ciência e encarrem a realidade, respondendo para si, tomados por uma honestidade radical que lhes empresto, acreditam que se pode ser o que não se é? Pois bem. Câncer foi. Alguém descreveu esse fenômeno, já conhecido pelos gregos e pelas estrelas, como a capacidade de passar uma coisa “que não é” para uma coisa “que é”. Um singelo momento que reúne a totalidade dos demais, em que todo o absurdo, toda a técnica, todo o conhecido se calam frente o impossível que se materializa: uma coisa passa a ser outra coisa — e isso é extraordinário. A pinça deixa de ser pinça. O pano e o ouro deixam de ser pano e ouro. As velas azuis, os três e o dois do meu aniversário, deixam de ser velas. Quase nada mudou, mas do encontro dos objetos, nasce algo que não é a soma ou produto das partes. Senhoras e senhores, esse sempre foi Câncer, desde a mais tenra idade.

digtialização e escultura: luca parise | arte finalista 3d: anderson rohr

Texto escrito e revisado no curso "Escrever se aprende escrevendo" ministrado pela Profa. Luana Chnaiderman

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