Você imagina São Paulo ou Miami mais violenta?

LIP
5 min readFeb 9, 2023

--

Pergunta: Qual cidade você imagina ser mais perigosa, São Paulo ou Miami? Mais especificamente, qual é a cidade onde você imagina ocorrer mais assassinatos per capita?

Resposta: A taxa de homicídio, que é o número de assassinatos a cada 100.000 habitantes, de Miami é mais que o DOBRO da de São Paulo.

Por que?

Porque que no imaginário de muitas pessoas (a maioria?) — pelo menos no meu e na totalidade dos amigos e colegas com quem dividi essa informação, e que assumo que muito provavelmente seja parecido para você que está lendo — Miami seria um lugar mais seguro que São Paulo?

São Paulo não tem só taxas de homicídio menores que Miami, mas menores que Denver, Honolulu, Philadelphia, LA. Estamos no mesmo patamar que New York, babe!

Se você tem dificuldade em acreditar (como eu), segue um gráfico:

fonte: Latinometrics

Se você segue com dificuldade de acreditar, aqui tem duas fontes de dados: o Homicide Monitor, do Instituto Igarapé e este artigo da Bloomberg.

Quais são as consequências de grande parte das pessoas acharem — erroneamente — que Miami é uma cidade com uma taxa de homicídio menor que São Paulo?

Comecemos pelos dados, todos de 2020 (dados mais atuais compilados): a cidade de Miami tem uma taxa de homicídio de 12,8 assassinatos a cada 100.000 habitantes. São Paulo, 5,3.

Como a população de São Paulo é muito maior do que a de Miami, o total de assassinatos em São Paulo é muito maior: foram 659 assassinados em São Paulo versus 61 em Miami no ano de 2020.

Isso faz Miami mais seguro que São Paulo? Não. Em termos relativos, que é o que importa, pois temos que comparar grandezas comparáveis, se pegarmos ao acaso um grupo de 100.000 pessoas em Miami, ocorreram lá mais assassinatos que num grupo de 100.000 pessoas de São Paulo.

Mas o que isso quer dizer? E por que se tem a sensação (ilusória) que Miami é mais segura que São Paulo? A quem interessa que tenhamos a percepção de que São Paulo é violenta? Que não me leiam errado, não acho que São Paulo não seja uma cidade violenta, mas me interessa a percepção que temos, nosso imaginário coletivo da cidade de São Paulo, que pode ser melhor analisado ao compará-la com outras cidades.

Estamos um pouco abaixo da média da taxa global de assassinatos, que foi 6.1% — dados de 2017, do relatório da ONU.

Quando pergunto a “quem interessa” não é esperando como resposta um sujeito ou instituição que está manipulando as informações ou percepções, mas à qual cultura, qual grupo, qual visão de mundo interessa essa percepção?

Se São Paulo é mais segura do que imaginamos, por que temos essa percepção tão violenta?

-

Alguns possíveis motivos especulativos:

1) Há 20 anos, São Paulo tinha uma taxa de homicídio quase 10x maior do que em 2020 (49,3% em 2021 contra 5,3% em 2020). Ou seja, tivemos um avanço tremendo na área de segurança. Com uma população menor que a de hoje, 5.174 pessoas foram assassinadas em 2001. Em 2020, foram 659. Talvez nosso imaginário coletivo ainda esteja muito ligado à São Paulo do começo do século XXI, ainda vendo-a como essa cidade muito violenta. Me pergunto quem é responsável por “atualizar” esse imaginário? Os jornais? Filmes? Novelas? A Música? A Arte? Qual trabalho não foi feito para não andarmos na rua com a percepção de que aqui é uma cidade com taxa de homicídio de 5,3?

2) Somos uma cidade gigante, com mais de 12 milhões de habitantes. Isso significa que conseguimos todos os dias preencher as páginas de jornais e quadros de programas televisivos com alguma desgraça: na média, são 2 assassinatos por dia em São Paulo, já em Miami é um pouco mais de 1 por semana, não dá para televisionar todo dia um assassinato local. Isso não significa que somos mais desgraçados que Miami, mas que somos muitos.

Fecho os olhos e penso nos telejornais matinais ou no Datena, Brasil Urgente, no Ratinho, na Band… O quanto esses canais (e tantos outros) não são responsáveis por criar uma percepção pior da cidade? Fazem um desserviço ao concentrar toda a desgraça espalhada pela cidade em um quadro de 1 hora e distribuir para milhares de televisores, criando a percepção que a desgraça está aqui do lado.

Não deixa de ser irônico me lembrar da quantidade de conhecidos que ouvi que se mudariam para Miami, principalmente na última década, em busca de uma cidade “mais segura”.

3) Leio o Estadão e a Folha de São Paulo de hoje. Mal encontro uma notícia sobre a cidade de São Paulo. Sobre meu bairro? Se der sorte na pescaria, uma notinha na semana.

O Globo no Rio de Janeiro, Zero Hora em Porto Alegre, A Tribuna (Santos) ou o Liberal, de Belém, são jornais com uma cobertura muito mais local.

Até que ponto a própria produção jornalística de informação não nos afasta do nosso próprio chão? Que essa visão, supostamente, “ampla” e “nacional”, não colabora para um afastamento do que está próximo?

Sinto uma falta tremenda de um jornal ou um canal que trouxesse notícias verdadeiramente locais do meu bairro: saber que o açougueiro faleceu, que tem um novo café, que estão começando uma obra, que terá uma apresentação pública das crianças da escola do quarteirão, etc.

São Paulo nunca foi a capital deste país, mas, desde sua origem, sobretudo a partir das bandeiras, São Paulo já se apresentou com uma vocação nacionalista. Hoje, é a maior cidade brasileira (em termos de dinheiro, população, área, e um monte de indicadores). Construiu-se um senso que São Paulo tem uma “missão” com todo o Brasil, que pode ser visto no incrível trabalho das “missões folclóricas” de Mário de Andrade, que tinham uma amplitude nacional e foram financiadas pela cidade de São Paulo.

Quando o historiador Alfredo Ellis Junior chama os paulistas de “Raça de gigantes”, leio o “gigante” como, sobretudo, aquele que está mais distante do seu próprio solo que os não gigantes.

Por fim, trago um exemplo de um jornal que acredito estar na linha oposta da Folha de São Paulo e do Estadão, criando uma real conexão com a sua comunidade: Sou fã do jornal impresso da comunidade nipônica Nippon Já que chega uma vez por semana na minha casa. Através dele, fico sabendo dos últimos acontecimentos do Bunkyo, da Liberdade, novos bares e restaurantes que abrem, questões das associações de bairro, e temas caros à comunidade nipônica — é um desbunde a capacidade deste jornal de me conectar com uma cultura e seu território — seja a Liberdade ou as cidades vizinhas de São Paulo com grande número de imigrantes nipônicos. (link para assinatura aqui, não ganho comissão rs)

-

A relação do que imaginamos sobre a taxa de homicídio de São Paulo versus a de Miami não faz de São Paulo uma cidade mais ou menos segura. Miami sequer é uma referência como cidade modelo (pelo menos não no meu imaginário). Serve, nesse caso, como uma metáfora para mostrar o viés do nosso imaginário em relação à cidade de São Paulo, do nosso entorno. Me parece que São Paulo e seus habitantes (nós) ganharíamos muito se tivessem mais jornais, canais ou instrumentos que fortalecessem uma percepção positiva local, do bairro em que vivemos, da padaria, mercado, do centro comunitário etc.

Que, em alguns momentos, o olhar que está no horizonte, também se voltasse para baixo, para o nosso entorno que nos sustenta, afinal é somente por causa dele que podemos estar de pé e olhar para longe.

--

--